Tente fazer um exercício de imaginação, principalmente se você, assim como eu, nem mesmo era nascido em 1969. Atualmente você liga seu televisor, conecta-o à internet, ao celular ou algum outro equipamento e assiste filmes e séries, em alta definição, que podem estar armazenadas do outro lado do planeta. Agora, imagine uma época em que a televisão em cores era uma novidade e ainda estava em uma fase de consolidação da tecnologia. Ela fazia parte da decoração da sala das famílias e figurava como um móvel (principalmente por causa de seu tamanho avantajado). Computadores domésticos não existiam sendo apenas aparelhos de ficção científica para a maioria das pessoas. Conexão de internet nem mesmo figurava como ficção científica nessa época. Então o que você diria se alguém aparecesse com uma caixa de cor marrom, com dois controles estranhos, um rifle de brinquedo e dissesse que você podia conectá-lo a sua televisão para que pudesse usá-la para entreter-se com jogos eletrônicos contidos nessa tal caixa?
Pois é. Toda grande inovação tem seu grau de rejeição inicial. Muitas nem mesmo veem a luz do dia e outras são tão inovadoras que os consumidores não estão preparados para ela e a rejeitam. Eu, particularmente, achei a visão de futuro do departamento de P&D da Sanders impressionante. Quer dizer, não só permitiu que Baer tocasse o projeto como ainda o financiou. Acredito que muito disso venha do fato da Sanders ser uma empresa de desenvolvimento de tecnologias, então eles tinham essa visão de “ver no que vai dar” e, agora, eles tinham um produto em mãos. Entretanto, uma pergunta pairava no ar: quem vai produzi-lo? Alguém estaria disposto a comprá-lo? Baer acreditava que, por ser um aparelho que funcionava em conjunto com a televisão, os fabricantes de televisores eram os candidatos perfeitos para fabricar seu TV Game.
Com a ajuda do diretor corporativo de patentes da Sanders, Lou Etlinger, eles convidaram os principais fabricantes de TVs dos Estados Unidos para conhecer o aparelho criado por Baer. Em seu livro, ele conta que em 1969 haviam mais de cem fabricantes de televisores nos Estados Unidos. Em janeiro desse ano, os engenheiros e o pessoal de marketing da RCA foram até a Sanders para conhecer a tal caixa marrom. Um fornecedor chamado Warwick, que fornecia aparelhos Roebuck’s TV para a Sears ficou interessado, mas pediu para eles conversarem com um comprador da Sears, primeiro. Baer conta em seu livro que ele, Etlinger e Harrison voaram até Chicago, logo após a saída do pessoal da RCA, para conversar com o tal comprador. Ainda segundo Baer, após finalizar a demonstração, o tal comprador virou para eles e disse que nunca colocaria uma dessas “coisas” em suas lojas e arrematou: “Todas as mães vão deixar seus filhos na loja no sábado de manhã para que a gente cuide deles o dia todo.” e gastou mais uma hora falando sobre suas façanhas e habilidades. Claramente, visão de futuro não era uma dessas habilidades, mas, como eu disse, a Brown Box era algo muito a frente de seu tempo em 1969.
Nos meses seguintes, os demais principais fabricantes: Zenith, Sylvania, GE, Motorola e Magnavox foram até a sede da Sanders para apresentações do aparelho de Baer. De todos, a RCA foi a que mais ficou interessada e chegou a negociar um acordo. Entretanto, o acordo fracassou e eles voltaram ao ponto inicial. Só que havia uma pessoa na RCA, Bill Enders, que realmente ficou impressionado com o dispositivo. Mas Bill agora era vice-presidente de marketing da Magnavox e, em julho de 1969, foi até a Sanders para assistir a outra apresentação da Brown Box, que o deixou ainda mais entusiasmado e o fez mexer os pauzinhos para que a administração da Magnavox desse uma segunda olhada no aparelho de Baer. É como diz o velho ditado: “Em terra de cegos, quem tem olho é rei.”.
Em 17 de julho de 1969, Baer, Harrison e Etlinger viajaram para uma das mais importantes demonstrações da Brown Box no quartel-general da Magnavox em Fort Wayne, Indiana. Conforme relatos de Baer, a recepção não foi exatamente entusiasmada. Fizeram a apresentação em uma TV de 19 polegadas, na qual demonstraram todos os 12 jogos disponíveis. Ao final da apresentação, somente uma pessoa demonstrou entusiasmo: Gerald G. Martin. Só que ele era a pessoa certa a ser atingida pela apresentação. Gerry Martin era o vice-presidente de Marketing de aparelhos de televisão da Magnavox e enxergou uma nova categoria de produtos.
Ainda assim, mais nove meses decorreriam até que Martin convencesse a administração corporativa da Magnavox a apoiar sua decisão de produzir a caixinha marrom. Já era março de 1970. Depois disso é que as negociações sobre o licenciamento da Brown Box foram iniciadas entre Etlinger e Martin. Isso ainda se arrastou por, praticamente, mais um ano. Nessa época, os negócios da Sanders não iam muito bem e o clima na empresa não era dos melhores.
Uma curiosidade revelada por Baer em seu livro é sobre o primeiro nome de produto que a Brown Box recebeu dentro da Magnavox. Eles a batizaram de Skill-O-Vision e a linha foi chamada de TV Game. O nome final pelo qual o primeiro videogame doméstico ficou conhecido, Odyssey TV Game, só foi definido no início de 1972 e, também segundo Baer, o inventor desse novo nome perdeu-se no processo corporativo da Magnavox.
Outra curiosidade é que ninguém se referia ao videogame como, bem… videogame. Eles eram comumente chamados de TV Game. O mais aceito é que o termo videogame foi primeiramente usado por Ed Adlum na Cashbox Magazine de março de 1973, pois ele achava estranho chamar as novas máquinas que chegavam aos arcades/fliperamas de TV games e cunhou o termo para diferenciá-los. O termo pegou e passou a ser utilizado de modo generalizado no decorrer da década de 1970. O acordo preliminar entre a Sanders e a Magnavox só foi assinado em janeiro de 1971 e, assim, a Brown Box e todos os dados do projeto foram oficialmente entregues aos engenheiros da Magnavox. Durante o ano de 1971 e início de 1972, os engenheiros trabalharam intensamente para transformar a Brown Box no Odyssey. Baer e Harrison participaram de todo o processo de criação do Odyssey, mas, como disse o próprio Baer, eles não tinham poder de veto, “só uma persuasão amigável”. O fato é que a engenharia da Magnavox, liderada pelo engenheiro Bob Fritsche, no decorrer do ano fez diversas alterações no projeto de Baer visando, principalmente, a redução de custos e, também, seu aprimoramento. A Magnavox optou por retirar o circuito que deixava o fundo dos jogos coloridos e substitui-lo por uma folha plástica que deveria ser colocada sobre a tela da TV, simulando cores nos gráficos simples e monocromáticos gerados pelo aparelho. Também resolveram tirar o conjunto de dezesseis interruptores para escolha dos jogos substituindo-os por placas de circuito impresso que faziam a conexão nos circuitos que geravam os jogos, facilitando muito o processo para o cliente que adquirisse o aparelho. Assim como a Brown Box, o Odyssey não emitia nenhum tipo de som.

Outra peça que foi criada durante o projeto foi a caixinha de comutação TV/Game que, se você nasceu depois de 1990, nunca deve ter sequer visto uma. Só que ela se tornou obrigatória nos videogames que usavam a entrada de antena da TV (sinal RF). Curioso é que o engenheiro da Magnavox, George Kent, a criou para atender a uma nova norma da FCC — Agência que é o órgão regulador das telecomunicações e radiodifusão dos Estados Unidos, fazendo o mesmo papel que a ANATEL faz aqui no Brasil —, que limitava a quantidade de sinal RF que podia ser enviada acidentalmente para o aparelho de TV. Essa caixinha comutadora criada pela Magnavox acompanhou todo e qualquer videogame até que as entradas de áudio e vídeo do tipo RCA tornaram-se padrão nos televisores em algum momento dos anos 1990.

Em maio de 1972, a Magnavox fez o lançamento oficial da sua linha de produtos para a temporada, dentre os quais estava em destaque o novo Odyssey TV Game System: Modelo 1TL-200. O evento aconteceu no Restaurante Bowling Greene, que ficava no meio do Central Park em Nova Iorque e contou com a presença de Ralph Baer. A Magnavox fez diversas apresentações como essa por todo os Estados Unidos como parte da sua Magnavox’s Profit Caravan ou Caravana do lucro da Magnavox. Até aí tudo bem, nada demais. O fato relevante aconteceu na apresentação ocorrida em 24 de maio de 1972, na marina de Burlingame, na Califórnia, onde um convidado muito especial assinou o livro de presenças e viu em primeira mão o novíssimo Odyssey funcionando com o jogo de pingue-pongue: era Nolan Bushnell, fundador da iniciante e ainda incipiente Atari.
Nos meses seguintes, o Odyssey começou a chegar aos revendedores Magnavox, mas ele não voou das prateleiras como imaginava seu criador e seu fabricante. Nem preciso lembrar como ele era um produto totalmente novo e diferente de tudo que os revendedores e possíveis compradores já haviam visto. Uma máquina que era capaz de rodar jogos na sua televisão e que respondiam aos seus comandos através de um controle ou um rifle estiloso.
De um ponto de vista atual, em que temos jogos foto realísticos, com sons e cores tão ou mais bonitas do que as do mundo real, o Odyssey pode não parecer grande coisa. Só que, em 1972, era um feito só existente na ficção-científica.
Claro que o marketing da Magnavox não ajudou muito. Primeiro lançaram um comercial na TV dando a entender que o Odyssey só funcionava em televisores da própria Magnavox. Inúmeros folders e propagandas da época diziam o mesmo. O preço de lançamento do Odyssey foi fixado em US$ 100 (cerca de US$ 622 em valores atualizados). No pacote vinham o console, vários artefatos para serem usados com os jogos e seis pequenas placas de circuito que, conectadas ao aparelho, permitiam acessar 12 tipos diferentes de jogos. O preço da novidade foi considerado exorbitante para a época e, com a ajuda da publicidade da Magnavox, limitou bastante o número de consumidores interessados no novo aparelho. Também tinha o fato da Magnavox não vender seus produtos nas grandes lojas de departamentos, mas, sim por meio dos seus revendedores franqueados, limitando ainda mais o alcance de vendas do Odyssey. É necessário relevar alguns desses erros, pois o Odyssey era um produto diferente de tudo o que podia-se encontrar nas lojas e catálogos. Um mercado totalmente novo em que a Magnavox e, posteriormente, seus concorrentes tiveram que desbravar por tentativa e erro.
Mesmo sendo um produto tão novo, caro e com restrito número de pontos de venda, não da para dizer que o Odyssey foi um fracasso. Ele vendeu 300 mil unidades entre 1972 e 1975, quando foi oficialmente descontinuado. Ele, também, foi responsável por ajudar a Sanders a sair de suas dificuldades financeiras. Durante vários anos, foi uma das maiores fontes de receita da Sanders.
Há diversas curiosidades sobre o Odyssey, o primeiro videogame doméstico feito para funcionar no televisor que as pessoas já tinham em casa. Vamos a elas:
– Ele não vinha com fonte de alimentação de energia. Ele tinha entrada, mas a fonte deveria ser comprada a parte. Funcionava com seis pilhas grandes, como qualquer brinquedo. Porque essa era a visão que todos tinham sobre esses aparelhos: de que eram brinquedos. Essa foi uma visão que perdurou até a chamada guerra dos consoles entre a Sega e a Nintendo no início da década de 1990;
– O Odyssey não gerava imagens coloridas ou emitia qualquer tipo de som. Ele vinha com uma porção de tabuleiros, películas de plástico colorido, fichas, entre outros badulaques, para que os jogadores interagissem com o aparelho;
– Esses apetrechos que acompanhavam o Odyssey também tinham a missão de suprir uma outra deficiência do aparelho: os jogos não tinham marcador de pontos;
– Outro detalhe é que o Odyssey exigia duas pessoas para jogar. Nada de jogar contra o computador;
– O tópico anterior nos leva a outro ponto sobre o Odyssey. Ele era uma obra de engenharia eletrônica, mas não era um computador. O Odyssey não tinha nada parecido com um microprocessador, não tinha memória e nem programas armazenados em algo que pudesse ser chamado de unidade de armazenamento. Todos os jogos eram, por assim dizer, “programados” via componentes eletrônicos. Até porque, em 1972, microprocessadores ainda eram uma novidade absurdamente cara para serem usados em um brinquedo;
– Para acessar o jogo desejado, devia-se usar as placas de circuito que acompanhavam o Odyssey. Elas funcionavam como jumpers que, apesar da aparência, não eram cartuchos como posteriormente os videogames passaram a usar. Eles não tinham nenhum tipo de memória que armazenava o jogo e eram, simplesmente, ligações que diziam ao Odyssey o que ele deveria mostrar na tela. Essa foi a ideia da Magnavox para substituir o painel de switchs da Brown Box.

O Odyssey foi um marco na história dos videogames. Inspirou muita gente mostrando que era possível usar a televisão para algo mais do que somente assistir programas e, também, que as pessoas estavam dispostas a pagar por esse tipo de entretenimento. Ele abriu caminho para uma indústria e um mercado totalmente novos.
Impossível negar a importância de Ralph Baer para a criação do videogame doméstico. Apesar de esquecido durante muito tempo, sua mente inovadora nunca parou de fervilhar. Após a criação da Brown Box, ele criou vários aparelhos de diversão, como o famoso jogo eletrônico Simon ou, como nós conhecemos no Brasil, o Genius. Pesquisando sobre sua trajetória, li e assisti diversas entrevistas que ele deu ao longo dos anos e, lá no fundo, é possível ver a amargura de uma pessoa que nunca foi totalmente reconhecida por seus feitos, algo que só ocorreu tardiamente. Ele assistiu o mercado de videogames explodir e virar uma gigantesca indústria que cria, produz e gera uma infinidade de empregos, sem falar na imensa quantia de dinheiro que movimenta onde, muito poucos, realmente se interessaram em conhecer suas origens e seus pioneiros. Ele também foi ofuscado por outros players do iniciante mercado dos videogames, como a Atari, de Nolan Bushnell. O Odyssey não foi um fracasso, claro, mas quem ganhou os holofotes foi o arcade Pong, da Atari.
Baer era um engenheiro super organizado e patenteou todos os seus inventos. Ele guardou toda a documentação, as anotações e os protótipos que culminaram na criação da Brown Box. Atualmente está tudo no Museu Smithsonian devidamente preservado. Ele realmente gastou muita energia nisso. Enquanto os concorrentes criavam e evoluíam, Baer focou passou muito tempo defendendo seu “bebê”, como chegou a se referir ao Odyssey na época de seu lançamento. Ele forçou a Magnavox e a Sanders a processar todos os concorrentes que, de algum modo, plagiaram sua ideia. Ele estava errado? De maneira alguma. Ele tinha esse direito, só que ele e a Magnavox cometeram um erro imperdoável: esqueceram de evoluir e fazer do Odyssey uma máquina cada vez mais avançada, aproveitando todo o frenesi criado. Em vez disso, ficaram criando versões e mais versões do mesmo jogo, requentando a fórmula até a exaustão. Como você verá no decorrer desta história, tal tipo de equívoco não foi exclusividade da Magnavox, ainda que ela tenha a desculpa de ter sido a pioneira, cometendo erros compreensíveis em um mercado totalmente novo e sem nada parecido em que eles pudessem balizar suas ações.
Em várias entrevistas, Baer parece demonstrar um grande ressentimento com Bushnell. O fato de Bushnell ser chamado de pai dos videogames, também o incomodou durante toda a sua vida. Baer diz ter tentado contato com Bushnell inúmeras vezes e sempre foi ignorado. Acredito que isso se deva, principalmente, ao processo movido pela Magnavox. Eles primeiro processaram a Atari e só depois Baer quis conversar. Assim como todos os concorrentes, a Atari foi acionada judicialmente pela Magnavox por ter plagiado o jogo de Pingue-Pongue do Odyssey. Bushnell aparenta ter levado para o lado pessoal, por outro lado, ele reconhece a contribuição de Baer como inventor do Odyssey, mas, entende que ele só iniciou o processo, pouco contribuindo para a evolução dos videogames no decorrer dos anos, o que é um argumento difícil de rebater, visto que a Magnavox extraiu do Odyssey tudo o que pôde e o que não pôde, só vindo a se preocupar em criar algo novo no final da década de 1970 quando lançou o Odyssey2. Bushnell também disse que era Baer quem nunca quis conversar com ele nos diversos painéis em que se encontravam como convidados. Ralph Baer faleceu em 06 de dezembro de 2014 e deixou um legado gigantesco, sendo, depois de muitos anos, reconhecido como o pai dos videogames.
