12 de dezembro de 2025

The Brown Box

Algo interessante sobre as invenções da humanidade é que elas nunca são eventos isolados. Eventualmente, alguém sempre acaba chegando primeiro na solução, mas, se você pesquisar, vai descobrir que esses inventores nunca estiveram sozinhos no caminho. Irmãos Wright e Santos DuMont, Edson e Tesla, Benz e Daimler entre tantos outros. Com os videogames não foi diferente. Enquanto Nolan Bushnell se debruçava em criar um jogo totalmente novo para os arcades outro inventor, que acabou não ficando tão famoso, trabalhava incessantemente em uma ideia louca de como transformar aquele enorme e passivo aparelho de televisão em algo com algum tipo de interação com as pessoas. Seu nome é Ralph Baer e sua invenção: a Brown Box. O ano? 1966, bem antes de Bushnell.

Ralph Baer foi um engenheiro e inventor alemão naturalizado norte americano. Nascido em Rodalben, no estado da Renânia-Palatinado, Alemanha, em 8 de março de 1922, a família de Baer fugiu da perseguição aos judeus na Alemanha pouco antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, Baer começou seus estudos em eletrônica vindo a se graduar como Técnico de Serviço de Rádio pelo National Radio Institute-McGraw Hill Continuing Education Center em 1940. Com seus conhecimentos, Baer foi convocado para servir na inteligência militar dos Estados Unidos que ficava no quartel-general em Londres, Inglaterra. Ao fim da guerra e com financiamento do G.I. Bill, uma lei que oferecia diversos benefícios a veteranos de guerra, Baer estudou e se graduou em Engenharia de Televisão pelo Instituto de Televisão Americana de Tecnologia, localizado em Chicago. Em 1949, o instituto era o único local que oferecia esse tipo de curso. Daí em diante, Baer trabalhou em uma pequena empresa de equipamentos eletrodomésticos chamada Wappler, onde projetou máquinas de corte cirúrgico e depiladores.

Em 1951, ele foi trabalhar como engenheiro sênior na Loral Electronics, onde projetou equipamentos de sinalização para operadoras de linha de energia. Foi nessa época que Baer teve a ideia de fazer algo mais com o aparelho de televisão, que se tornava cada vez mais barato e presente nos lares norte-americanos. “Sempre pensei que um aparelho de TV poderia fazer algo mais do que simplesmente exibir programas e comerciais.” disse em uma entrevista à revista Galileu em 03 de janeiro de 2010.

Baer chegou a apresentar o projeto para a Loral; em que um recurso de jogo seria adicionado a um aparelho de televisão que ele fora encarregado de projetar. Segundo o próprio Baer, em uma entrevista para o livro “Replay: The History of Video Games”, de Tristan Donovan, eles estavam projetando uma televisão do zero, usando alguns equipamentos de teste e conseguiram movimentar algumas “coisas” pela tela. Então, ocorreu-lhe a ideia de fazer algo com isso para que as pessoas interagissem com a televisão. O chefe de Baer recusou a ideia e vetou a inclusão do recurso na televisão que já estava com o cronograma atrasado. Baer disse que não tinha pensado em algo parecido com um jogo na época. Bom, nem dá para achar engraçada a recusa da Loral uma vez que a ideia de um jogo na televisão estava muitos anos a frente de seu tempo. Não existia nada nem sequer parecido e os jogos de computador não passavam de experiências e curiosidades em laboratórios de universidades e centros de pesquisa, bem longe dos olhos do grande público.

Entre 1952 e 1958, Baer trabalhou na empresa Transitron, primeiro como engenheiro-chefe e, depois, como vice-presidente, e a ideia de um tipo de jogo para a televisão voltou a ficar adormecida. Em 1958, uma nova mudança e Baer vai trabalhar para uma empresa contratada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a Sanders Associates – atualmente BAE Systems – em Nashua, New Hampshire. Na Sanders, Baer foi, inicialmente, designado para o projeto de desenvolvimento de um aparelho de espionagem de codinome BRANDY, que tinha a função de captar ondas de rádio soviéticas. Baer concluiu o projeto antes do previsto e, com a aposentadoria do gerente da divisão de design de equipamentos, ele foi promovido para liderar a unidade. Ele supervisionava uma equipe de 500 pessoas entre engenheiros, técnicos e pessoal de suporte no desenvolvimento de sistemas eletrônicos para aplicações militares.

Foi em 1966, segundo o próprio Baer, que ele teve uma ideia do tipo “eureka” enquanto esperava o ônibus. Ele conta que a ideia de usar os aparelhos de televisão para algo mais voltou à sua mente e ele rabiscou tudo em seu bloco de notas. Na manhã seguinte, escreveu uma proposta de quatro páginas para uma “caixa de jogos” que custasse cerca de US$ 20 e que funcionária conectada a um aparelho de televisão, permitindo interagir com as imagens projetadas na TV. Na proposta, o tal aparelho transmitiria um sinal que seria sintonizado no aparelho de televisão e possibilitaria visualizar o jogo e as ações comandadas pelo jogador.

Baer não levou a ideia à sua chefia imediatamente. Ele precisava de algo mais palpável para mostrar. Nos dias que se seguiram, ele delineou como o aparelho deveria transmitir os sinais para a entrada de antena da televisão através de um modulador RF de modo que a TV sintonizasse um de seus canais para ser usado com o aparelho de jogo, que o chamou de canal LP de Let’s Play (Vamos jogar). Aliás, há algo curioso sobre os canais que seriam usados para sintonizar o aparelho à TV. Quem teve a oportunidade de jogar em videogames com tecnologia anterior às entradas RCA, vídeo componente, HDMI entre outras, deve se lembrar em quais canais o sinal do videogame era sintonizado para mostrar as imagens. Pois é. Ralph Baer, em setembro de 1966, definiu que os canais de número 3 e 4 seriam os tais canais LP.

Quando questionei Allan Alcorn sobre isso, ele me disse que “Na América, o canal 3 ou 4 é normalmente usado para dispositivos de televisão conectados. Isso significa que em todos os mercados os canais 3 ou 4 eram reservados para uso por aparelhos de televisão, de modo que as emissoras só podiam usar um dos canais em qualquer mercado.” ou seja, um desses canais nunca seria usado por uma emissora de TV, sempre ficando livre. Uma decisão lógica para um engenheiro como Baer.

Como a divisão comandada por Baer tinha uma equipe de 500 pessoas, ele achou que ninguém notaria se ele pegasse um ou dois engenheiros para trabalhar em seu projeto especial entre um projeto importante e outro. Segundo o próprio Baer, em seu livro “Videogames – In The Beginning”, em setembro de 1966, ele ligou para um dos gerentes de departamento e pediu um técnico emprestado e lhe designaram Bob Tremblay. Baer colocou Tremblay para trabalhar em um circuito com válvulas de vácuo para mostrar que eles sabiam como mover pontos e linhas por uma tela de TV. Para economizar tempo, Baer comprou um equipamento de teste usado para ajustar aparelhos de televisão: um gerador de alinhamento de TV Heathkit IG-62. Esse equipamento realmente os ajudou, diminuindo o tempo que passaram construindo diversos circuitos críticos para colocar uma imagem na tela da televisão. Mesmo assim, Baer diz que fazer as imagens aparecerem no monitor da TV foi “um exercício de aprendizagem”.

Mesmo com Tremblay sendo chamado inúmeras vezes para resolver problemas em outros projetos em que estava trabalhando, ele finalizou a tarefa designada por Baer entregando-a no início de dezembro de 1966. Baer ainda fez uma mudança para deixar os objetos coloridos e, em 10 de dezembro de 1966, Tremblay entregou o circuito pronto e voltou ao seu trabalho normal. Baer nomeou o aparelho como TV Game (TVG) Unit #1.

Ele também sabia que não podia tocar seu projeto secreto indefinidamente. Ele podia mover algumas peças para projetos experimentais dentro de seu orçamento de US$ 10 milhões, mas não podia fazer isso escondido. Era hora de levar seu pequeno projeto a público. Ou a empresa achava válido investir tempo e dinheiro na sua ideia ou ela morreria ali mesmo. Assim, ele decidiu fazer uma demonstração do conceito para a pessoa que tinha a chave do cofre e pudesse financiar o projeto do TV Game. Chamou, então, Herbert (Herb) Campman, Diretor Corporativo de Pesquisa e Desenvolvimento. “Parece que tem potencial”, disse Herb ao final da demonstração, “mas é melhor fazer coisas mais interessantes do que isso”, complementou. Por fim, Herb solicitou que fizesse um pedido formal de financiamento para o TV Game. No final de dezembro de 1966, Baer enviou o memorando solicitando o dinheiro e explicando o que faria com ele. Herb liberou o primeiro financiamento oficial de pesquisa e desenvolvimento: US$ 2 mil (cerca de US$ 14 mil em valores atualizados) para mão de obra e US$ 500 (aproximadamente US$ 4 mil atualmente) para os materiais necessários. Não eram valores vultosos, mas, segundo Baer, foi o suficiente para manter o projeto andando e, principalmente, agora oficialmente. Isso aconteceu no final do ano, então pouca coisa aconteceu até fevereiro de 1967. Ele passou esse período discutindo com Bob Solomon e esboçando páginas e mais páginas sobre circuitos básicos para tornar realidade várias ideias para jogos simples que tiveram. Baer chegou a escrever um manual sobre o sistema de cores usados nas televisões norte-americanas, pois nenhum dos técnicos da Sanders tinha conhecimento sobre circuitos de TV, mas sempre com o foco no objetivo final: projetar e construir um acessório interativo barato, porém interessante, para um aparelho de TV.

Foi em fevereiro de 1967 que Baer trouxe o engenheiro William L. Harrison ou, simplesmente, Bill Harrison para o projeto. Eles também precisavam de um local tranquilo e longe das vistas de curiosos para trabalhar e montar os protótipos. Assim Baer confiscou uma pequena sala que ficava no quinto andar do prédio da Sanders, em frente ao elevador e que ninguém nunca utilizava. Baer deu uma cópia da chave da sala para Harrison e instruiu-o a tratar o projeto como secreto. Nessa pequena sala eles colocaram todos os equipamentos de teste e uma televisão da marca RCA, colorida e com uma tela de 19 polegadas. Baer e Harrison continuaram trabalhando nos circuitos e desenvolvimento dos jogos com o apoio de Hebert Campman.

Ninguém mais na Sanders sabia o que se passava na tal salinha do quinto andar. Eventualmente, a notícia de que Baer estava brincando com aparelhos de televisão espalhou-se até chegar aos altos escalões da empresa. Para evitar qualquer mal-entendido, Herbert Campman marcou uma demonstração para os altos executivos da Sanders: incluindo o presidente da companhia Royden Sanders e o vice-presidente Harold Pope, além de alguns membros do conselho de administração. Se algo desse errado, seria o fim do projeto.

Em 15 de junho de 1967, Royden Sanders, Harold Pope e todo o conselho de administração estava a postos em uma sala de conferências para a apresentação. Apesar da boa recepção da apresentação, Baer conta que ficou no ar a dúvida de como aquilo poderia se transformar em um negócio. Henry Argento, um dos membros da diretoria, foi, provavelmente, um dos maiores entusiastas da ideia e permaneceu como patrocinador do projeto nos anos que se seguiram. Por fim, Sanders e Pope, após conferenciarem brevemente, decidiram pela continuidade do projeto, mesmo com várias perguntas ainda sem repostas. Entretanto decretaram: “Construa algo que possamos vender ou licenciar.”.

Nesse ponto, Baer sabia que precisava de novas ideias para jogos e rápido. O problema é que ele não era um game designer…de fato essa profissão nem mesmo existia na época. Foi Herbert Campman quem acabou trazendo um novo membro para a equipe e que viria a ser uma grande fonte de ideias para jogos. Bill Rusch, um engenheiro experiente graduado pelo MIT e, que segundo Campman, era muito criativo. Assim, em agosto de 1967, Rusch juntou-se à pequena equipe. Só que nem tudo foram flores. Segundo palavras do próprio Baer, em uma entrevista para o site Gamasutra, Rusch era “construtivo e criativo, mas um pé no saco… A hora do almoço era sempre de duas horas, sabe. Sem disciplina. Eu odiei isso. Mas muito criativo e muito inteligente e contribuiu muito.”. Na realidade, a contribuição de Rusch foi essencial. Foi ele quem insistiu em utilizar um terceiro ponto, além dos dois que já estavam funcionais. Foi a partir desse terceiro ponto que o jogo de pingue-pongue foi viabilizado. Jogo esse que, anos mais tarde, viraria uma febre sem precedentes durante a década de 1970.

Durante esse processo de desenvolvimento, sete unidades protótipo foram construídas. Na quinta unidade, Baer sabia que precisava direcionar o projeto para um fim. Ele havia gasto muito tempo, energia e dinheiro; precisava direcionar sua invenção para um modelo de negócio. Ele sabia que a Sanders não tinha nenhuma experiência na fabricação e distribuição de produtos de consumo, então, a saída mais viável era achar um parceiro para isso. Primeiramente tiveram a ideia de vender o conceito para empresas de TV a cabo, que vinham crescendo de maneira muito lenta e precisavam de algo novo para atrair novos assinantes. Baer entrou em contato com a empresa TelePrompter Corporation, de Nova Iorque, e marcaram uma demonstração. Em janeiro de 1968, Herbert Campman mandou parar o projeto e dar total atenção ao processo com a TelePrompter. Durante os meses seguintes, Baer trabalhou com eles na montagem de um contrato com a Sanders, mas, no fim, não deu certo. Segundo Baer, as empresas de TV a cabo eram muito pequenas naquela época e a TelePrompter simplesmente ficou sem dinheiro para dar continuidade ao projeto.

Após 8 meses parados, Campman liberou uma nova verba para Baer e trouxe Bill Harrison novamente ao projeto. Harrison, inicialmente, trabalhou na limpeza dos circuitos e, então, começou a trabalhar na construção do protótipo de número seis. Nessa nova unidade, eles colocaram um botão seletor para a escolha do jogo. Bill também construiu uma nova arma com um rifle de brinquedo comprado em uma loja Sears. Ele inseriu circuitos mais sensíveis no interior do rifle. Esse mesmo rifle foi utilizado na versão final, de número sete. Baer e Harrison refinaram o protótipo número seis e chegaram a um custo estimado de quinze dólares mais cinco dólares do rifle. Eles estavam animados. Estimaram, em uma grande visão de futuro, que só o jogo de pingue-pongue poderia ser vendido por cinquenta dólares no varejo.
Satisfeitos com os avanços, eles iniciaram a construção da unidade número sete onde usaram interruptores no lugar do seletor da unidade seis. Com isso era possível “programar” os jogos somente posicionando os interruptores que eram num total de dezesseis. Eles reconstruíram os controles e reaproveitaram o rifle. Harrison cobriu a estrutura de alumínio e papelão com um vinil marrom autoadesivo que imitava uma textura de madeira para dar uma cara mais atraente ao aparelho e fez o mesmo nos controles. Assim estava pronto o primeiro console de videogame doméstico: The Brown Box ou Caixa Marrom. Segundo Baer, isso foi em meados de janeiro de 1969.

Quando Herbert Campman foi apresentado ao resultado de todo aquele trabalho ele ficou realmente impressionado. Segunda Baer, uma das frases de Campman foi “Parece-me que finalmente estamos chegando lá!”. Campman liberou mais verba para o projeto que Baer aproveitou para fazer os arremates finais e colocar os jogos de vôlei e handebol na Brown Box. Finalmente a Caixa Marrom estava pronta para ser demonstrada.

Eles finalmente tinham o produto, mas quem estaria disposto a produzi-lo e comercializá-lo? Esse foi o próximo grande passo na criação do primeiro console doméstico de videogame.

The Brown Box. Domínio Público